CARTA DE CALVINO A FAREL: Pastor e Conciliador

CARTA DE CALVINO A FAREL: Pastor e Conciliador
Por Lucio Manoel





A carta escrita por Calvino ao seu grande amigo Farel, em 24 de outubro de 1538,
é apenas um dos muitos documentos onde se percebe o seu carácter pastoral e conciliador.
Quando Calvino e Farel foram expulsos de Genebra, em 1536, seguiram juntos para Basileia,
onde continuaram trabalhando ao lado de Bucer. Em julho de 1538, porém, Farel deixava Basileia
para se tornar ministro da igreja em Neuchâtel (Nota: Farel havia partido de Basileia sem poder
despedir-se de seu companheiro, pois Calvino estava em Estrasburgo, naquela ocasião).
Quando Calvino retornou a Basileia não encontrou mais o seu amigo. E em outubro do mesmo ano,
Calvino estava novamente em Estrasburgo, de onde escreveu esta carta a Farel.
Na época em que foram expulsos de Genebra, Calvino e Farel haviam sido substituídos pelos
ministros Antônio Marcourt e Morand, aprovados apenas por uma parte da igreja. Essa situação
desagradava a muitos irmãos, e somada à influência dos Libertinos que comprometia a saúde
espiritual da igreja, alguns irmãos insatisfeitos começaram a protestar, entre eles Antônio Saunier e
Mathurin Cordier.
Saunier fora discípulo de Farel, e chegou a assumir a direção do Colégio de Genebra. Reputado
servo fiel por Calvino, ele protestava veementemente contra a ilegitimidade dos novos ministros ao
ponto de enfrentar grandes dificuldades para aceitar receber a Ceia das mãos deles.
Eis o trecho da carta de Calvino a Farel, na qual expõe o conselho dado a Saunier:


“Não diminuímos nosso empenho e continuamos a clamar incessantemente por uma conferência,
até que seja conseguida. Saunier queria que discutíssemos outra questão: se seria legítimo para ele,
e outros em situação semelhante, receber o sacramento da Ceia do Senhor das mãos dos novos
ministros e participar dela com uma assembléia tão promíscua de comungantes indignos. Nessa
matéria, concordo totalmente com Capito. Esta foi, brevemente, a síntese da nossa discussão: que
entre os cristãos deve haver grande aversão aos cismas e que devem sempre evitá-los, até onde
depender deles. Que entre eles deve prevalecer grande reverência pelo ministério da Palavra e dos
sacramentos, considerando que a igreja existe onde quer que vejam a existência desses atos. Onde,
pela permissão de Deus, ocorrer de a igreja ser administrada por pastores, quaisquer que sejam o
tipo de pessoas, se identificarmos nela as marcas da igreja, o melhor será não quebrar a unidade.
Nem deve ser impedimento que alguns pontos de doutrina não sejam totalmente puros,
considerando-se que quase não há igreja que não conserve alguns resquícios da ignorância passada.
Para nós, é suficiente que seja reconhecida e mantida em seu lugar a doutrina sobre a qual a igreja
de Deus se fundamenta. Nem se deve considerar como obstáculo que se reconheça como pastor
legítimo não apenas aquele que se insinuou fraudulentamente no ofício de verdadeiro ministro, mas
também quem o usurpou impiamente. Pois não há nenhuma razão pela qual cada indivíduo deva se
confundir com esses receios. Os sacramentos são os meios de comunhão com a igreja e, portanto,
precisam ser ministrados pelas mãos dos pastores. Com relação aos que ocupam esta posição,
legitimamente ou não, e conquanto não se impeça o direito de julgar acerca disso, será melhor
suspender temporariamente o juízo, até que a questão seja legalmente decidida. Portanto, se os
homens permitem seu ministério, não correrão nenhum perigo de parecerem validar ou aprovar, nem
de ratificar de nenhuma maneira a comissão deles. Mas, dessa maneira, darão prova de sua
paciência em tolerar aqueles que, segundo sabem, serão condenados por um julgamento solene. A
repulsa inicial desses excelentes irmãos não me surpreende nem mesmo me desagrada. Na
verdade, numa época de tão grande agitação, que não poderia deixar de levar à efervescência a
mente dos homens, o cisma no corpo de Cristo foi um resultado inevitável. Além disso, ainda não
tinha certeza para onde os levaria, finalmente, esta tempestade, a qual, por enquanto, põe tudo em
confusão e desordem.
Saunier, então, passou a falar por si, mas com tanta contenção que parecia que só chegaria ao fim
quando arrebatasse o que buscava. Havia razão suficiente e notória pela qual deveríamos negar.
Pois, do ministro, a quem pertence a ministração deste mistério sagrado, exige-se prudência ao
tomar uma decisão necessária. Além disso, quem não repudiou a companhia deles logo a princípio,
aprova-lhes o ministério plenamente. Por fim, ao se reduzir a questão a estas condições: se era
melhor aquiescer ou recusar-se, forcei-o ao seguinte dilema: se o ministro cumpre o seu dever, tudo
irá imediatamente bem; se não, isso causará um escândalo impossível de suportar, sejam quais
forem as supostas vantagens que daí derivem. Mas, ao perceber-me firmemente determinado a
chegar ao resultado que eu buscava, ele prontamente aquiesceu nisso, sem se importar com o que
fosse. Sabemos, pela nossa experiência, como é difícil conservar nos devidos limites aqueles que
estão inchados com uma tola opinião sobre a própria sabedoria.
Quando todos achávamos esse momento em particular demasiadamente desarrazoado para se
discutir os pontos contestados entre os irmãos, o Senhor sobrepujou nossas maiores expectativas.  
Tudo quanto buscávamos foi conseguido. Saunier, a princípio, parecia repudiar que se exigisse
alguma fórmula de confissão. Ele supôs que isso bastava para satisfazer nossos amigos, porque
haviam sido ensinados por ele mesmo. Posteriormente, porém, relaxou sua posição e aprovou, sem
mais controvérsia o modo como a escrevi em nome deles. Temo que a pessoa eu lhe dará o maior
aborrecimento é aquela cuja tarefa seria lhe ajudar; todavia, com resignação paciente, você superará
a dificuldade. Rogo-lhe, meu querido irmão, em meio a essa enorme iniquidade da época em que
vivemos, que se empenhe ao máximo para conservar juntos todos quantos são, de algum modo,
tolerável. Quanto às cerimônias insignificantes, esforce-se para induzir os irmãos a não discutirem a
questão com a vizinhança deles com obstinação tão irredutível. Então, acontecerá que conduziremos
nossa posição, livres nós mesmos e tudo o mais, de modo a que sirvamos unicamente aos interesses
da paz e da concórdia cristãs.
Calvino e Farel mantiveram constantes contatos por carta, nas quais compartilhavam notícias das
igrejas e discutiam assuntos pertinentes, entre outras coisas.
A carta na íntegra faz parte da obra Cartas de João Calvino: celebrando os 500 anos de nascimento
do Reformador de Genebra. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 39-42.

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