FRANCOIS TORRETINI: Tributo à ilustre cidade de Genebra (parte dois)


por Mariane Baldi (digitação)

François Turretini
10 de fevereiro de 1679



…  Aliás, permitam-me dizer algo sobre mim mesmo.

            Desde o tempo em que Deus me quis, por seu extraordinário favor, elevar a honrosa posição
que ocupo ao longo de trinta anos (ainda que não me sentisse a altura de tal empreendimento, e a
consciência de minha fragilidade facilmente me persuadisse de quão inferior era eu ante os grandes
homens que me precederam aqui), contudo, posso solenemente testificar diante de Deus que jamais
me propus outro objetivo senão de seguir sempre meus predecessores, não com os mesmos passos,
porém no mesmo caminho e em conformidade com minha capacidade de seguir suas pegadas, ainda
que não andando no mesmo ritmo. Tampouco cria que pudesse melhor adornar o posto que ocupo e
satisfazer mais a consciência do juramento, pelo qual fui obrigado no ofício que me foi confiado, do
que se me esforçasse unicamente para isso que os jovens a mim confiados fossem aqui imbuídos de
uma teologia mais pura e da doutrina séria e sólida.    

           A este curso (embora por mim mesmo preparado), também fui impelido pelo exemplo
doméstico de dois fiéis servos de Cristo ligados a mim pelo sangue. Refiro-me ao grande teólogo
John Diodate, meu tio materno, cujo nome (mui celebrado por todo mundo) e cuja obra sobre as
Sagradas Escrituras (muito elogiada e mui digna do cedro, para não mencionar nenhuma outra)
demonstra sua eminência. Também Benedict Turretin, meu mui querido pai, da mais bendita e
querida memória, que, arrebatado por morte prematura e saudosa, obteve a honra de acurado e
sólido teólogo, como a fama (sobre a qual guardo silêncio) proclama e seus escritos testificam.
Animado por esses mais e mais ao dever, mantive sempre em mente que tinha de fazer essa única
coisa: uma vez descartadas as questões inúteis e fúteis (que alimentam a curiosidade, porém não a
fé do ministro), comporia todas as minhas obras em conformidade com a palavra como o sagrado
centro de interesse, e poria diante dos jovens consagrados a Deus o “puro leite racional” (logikon adolon gala), por meio do qual eles pudessem avançar a cada dia na verdade que é segundo a
piedade e assim pregar-se para a obra do ministério. Esse é o objetivo desta produção, cuja primeira
parte vem à luz. A princípio se destinava ao uso de nossos estudantes e foi esboçada grosseiramente.
Em certa medida, não me sinto tanto movido voluntariamente quanto compelido ao oferecê-la ao
público a fim de satisfazer às frequentes e retiradas demandas dos que supõem haver alguma
vantagem de oferecê-la aos guardiães das coisas sagradas, facilitando progresso das controvérsias
empreendidas contra nossos adversários. Se sua expectativa for confirmada, o evento no devido
tempo (com o favor de Deus) no-lo demostrará.

             No ínterim, determinei-me, com toda a submissão conveniente, a apresentar e dedicar-vos,
mui eminentes homens, esta obra (tal como é). Pois, ainda que excitasse não pouco em chegar-me a
vós com essa humilde dádiva (não faltavam várias razões para deter-me do meu propósito), às
persuasões de vossa bondades e a consideração de meu dever tiveram com efeito (eliminado todo o
temor) levar-me a não vacilar em escrever vossos esplêndidos nomes no frontispícios desta minha
obra; para que, sobre vossos auspícios, pudesse vir a público mais satisfeito e mais seguro, estando
persuadido de que o argumento não vos seria desagradável, o qual contém as reivindicações da
doutrina salvadora (pois nada deveria ser mais cara para nós do que ela). Nem que negasse vosso
patrocínio a esta pequena obra, que nada mais almeja senão a promoção da causa de Deus e a
verdade celestial, da qual ele quis que fôsseis os defensores contra as vãs invenções dos homens.
Além disso, nada era mais justo do que fazer vossos estes frutos (ainda que pobres) de meus estudos.
Eles já eram vossos por direito, visto que do vosso solo emanaram e nele foram cultivados. Espero,
assim, comprovar para vós, mesmo por esta amostra, a minha fidelidade (senão erudição) do
desempenho do encargo a mim confiado. Não seria imune ao crime de ingratidão (acharistias) se,
porventura, não fosse essa singular benevolência, eu tivesse agido de outra forma, benevolência pela
qual aquele mui piedoso e virtuoso varão, Francis Turretin, meu avô, chegou aqui da cidade de Lucca
há mais ou menos cem anos. Sendo postas de lado todas as bênçãos de uma região muito aprazível,
impelido pelo sacro zelo de professar uma religião mais pura, sob a proteção do mui renomado senado,
ele fixou sua sede aqui, com sua família, deleitando-se em desfrutar a mui desejada luz do evangelho
com muitos amigos e parentes da nação italiana e com outros homens piedosos a quem o amor da
verdade e o suave perfume (euodia) de Cristo atraíram para cá. Desde o ano de 1552, uma igreja
italiana foi fundada pelos esforços de João Calvino sob a proteção e autoridade de um magistrado
cristão, igreja que, pela singular graça de Deus, é mantida até o dia de hoje sob vossa proteção. A
memória dessa bondade, como permanecerá permanentemente fixada em nossa mente, assim exige
que, em testemunho de uma mente agradecida, seja ela declarada a todos.




         E por essa razão vós não cessais de dar não obscuras provas do mesmo favor, principalmente
para comigo, a quem tendes honrado com muitas distinções; não só em confiar-me, acima de todo o
meu mérito, o sagrado ofício que desempenho tanto na igreja quanto na academia, mas também por
sempre me acalentardes de uma maneira bondosa e aprovardes até aqui todas as minhas tentativas.
É assim, sendo frequentemente convidados para outros lugares, embora pensando em nada menos do
que na mudança de minha posição (e especialmente alguns anos antes de ser honrosamente chamado
pelos mui nobres e poderosos senadores, tanto na Bélgica confederada quanto da Holanda, para
carreira teológica no florescente Ateneu do Lugdunum Batávio [Leiden]), com uma benevolente afeição
para comigo, quisestes reter-me aqui. Isso feito, tendes mais e mais prendido de tal forma a vós a
minha fé e o meu serviço (já consagrado) que merecidamente adquiriria má fama se, embora não
podendo quitar minha dívida, pelo menos não a reconhecesse sinceramente; nem deixarei de cuidar
para que sempre exista algum constante monumento de meu respeito por vós e da gratidão da minha
mente. Aceitai, pois, com ânimo sereno, mui distintos noAbres, este pequeno penhor, não de diminuto
respeito, mas do meu mais devotado respeito e do meu mais ardente zelo para com esta vossa sede
da luz evangélica. E continuai a favorecer aquele que de bAoa vontade reconhece que agora está sob
as mais elevadas obrigações para convosco; assim ele professa e promete ser totalmente vosso por
serviço e reverência. Quanto ao mais, como suplicante, rogo ao boníssimo e eminentíssimo Deus, por
quem reinam os reis, que sempre vos seja propício, eminentes governantes. Que Ele preserve em
segurança a república o máximo de tempo possível e vos enriqueça com toda sorte de bênçãos,
exercendo assim o seu governo sobre vós pela liderança (hegemoniko) do seu espírito de sabedoria e
força, de piedade e justiça, para que todos os vosso conselhos contribuam para a glória de seu
santíssimo nome, para o benefício da república e para a felicidade da igreja. Amém.

        Genebra, 10 de fevereiro de 1679 d.C.

François Turretini

Retirado do livro Compêndio de teologia apologética. São Paulo: Cutura Cristã, 2011, vol. 1;
Tradução de Edições Paracletos, p. 25-31.



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