FRANÇOIS TURRETINI: Tributo à sempre célebre República de Genebra (parte um) Vídeo Youtube

por Mariane Baldi (digitação)

François Turretini
10 de fevereiro de 1679


Aos mui magníficos, nobres e honrados homens do Cônsul e de todo o Senado da célebre República
de Genebra, saúde e toda a felicidade é o desejo de Francis Turretin. Com frequência, quando penso
no estado desta república, em cujo governo Deus vos tem colocado, mui distintos nobres, ocorrem-me
tão grandes milagres pelos quais ela tem se tornado famosa que, o que o divino poeta outrora cantou
concernente a Jerusalém, ninguém negará que, não imerecidamente, pode ser lhe atribuído: “Coisas
gloriosas se têm falado de ti, Ó cidade de Deus”. Deveras pequena, confesso, dificilmente existindo
outra menor entre as milhares de Judá, se as vantagens da natureza forem levadas em conta; grande,
contudo, dificilmente havendo outra menor, se os dons divinos forem postos em mira. Mas, ainda que
as bençãos que Deus, com mão liberal, derramou profusamente sobre ela, e nestes dias derrama,
sejam inumeráveis, há duas eminências além das demais que enaltecem sua dignidade: a religião,
que acima de tudo é mais santa, e a liberdade, que acima de tudo é mais doce. É, por assim dizer,
outra Gósen, que os raios do sol da justiça iluminam, enquanto o Egito do mundo é coberto das mais
densas trevas do erro, mais que os cimérios: outra Zoar, pequena, porém segura, na qual os piedosos
encontram deleitável asilo, enquanto o fogo destruidor do juízo divino queima e alimenta a muitas
outras regiões do mundo; uma genuína Bete-Semes e Heliópolis, casa e cidade do sol, onde aquele
sol visível não mais é adorado (o que é denunciado por tendo sido feito aqui um gentilismo por uma
tradição não menos constante que concordante).

Mais a divina aurora do alto é adorada, Cristo, o Senhor, que é nosso sol e escudo; o sol de toda
bênção, garantindo a glória da região; o escudo da mais segura proteção, propiciando invencível e
inexpugnável guarda da liberdade. Essas bençãos (a suprema glória de Genebra) fornecem o mais
justo argumento em prol da celebração da admirável providência de Deus para o nosso favor. Pois,
quem não se extasia ante o fato de que, naquelas convulsões mais sérias de quase toda a Europa,
onde raramente uma região esteve isenta de guerra (nenhuma delas deixou de sentir seus
terribilíssimos efeitos), nós, quase sozinhos nesse tão longínquo canto da terra, desfrutando uma paz,
permanecemos intocados e livres. Entrementes, outros são compelidos com a mais profunda tristeza
a contemplar campos devastados, cidades tomadas e saqueadas, vilas calcinadas, províncias
eliminadas e outros lamentáveis, funestos e terríveis outros acompanhamentos da guerra. Expulsos
de sua habitações paternas, miseravelmente vagueiam como exilados e escorraçados. Debaixo de
nossa videira e de nossa figueira, tranquilamente comemos pão e desfrutamos a mais profunda paz.


Seríamos os mais ingratos dentre os mortais se não considerássemos essa liberdade e essa paz
como puras bençãos de Deus, o qual vela por nossa salvação. Tão-somente ele produziu e produz
essa nossa serenidade. Aquele que foi antes de tudo o autor de tão imensa dádiva quis ser mais
tarde o sustentador e conservador de tal presente. Pois quem mais poderia ter desvendado os
artifícios de tantos conspiradores e traidores além de todas as expectativas dos homens? Quem mais
poderia ter repelido e frustrado tantas incursões e nefandas tentativas? Os amantes de hieróglifos,
quando vão representar a providência que sustenta todas as coisas, costumam engenhosamente
pintar uma cidade construída de arrimo, suspensa em pleno ar, sustentada por um grande braço
estendido do céu. Nossa Genebra, não irreal e emblematicamente, porém verdadeiramente, é
sustentada pela mão divina; não por meios ou assistência humana: “Não por força nem por poder,
mas por meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos” (Zc 4.6).


Mas deve-se considerar um benefício ainda maior e mais ilustre que aquele primordial fundamento
da divina proteção, sob cuja sombra então repousamos com muito mais segurança (a saber, a
verdade celestial e o depósito de uma religião muito mais pura com cuja inestimável dádiva Deus
quis abençoar-nos). Por esse meio - tendo sido derribada do anticristo romano, o erro triunfantemente
espezinhado, a superstição posta em fuga, os ídolos destruídos, as trevas dispersas - aquela luz
salvífica, por tanto tempo esperada para subjugar as trevas, felizmente resplandeceu sobre aqueles
que jaziam nas trevas da sombra da morte. Ditosas colinas que Deus tem amado tanto como o lugar
de candelabro de ouro da verdade - dali os raios da divina verdade, que se difundem em  todas as
direções, iluminaram uma grande parte do mundo; favoreceram o estado e a igreja que Cristo julgou
digna de tão grande honra que a consagrou como o lugar de repouso da arca, a sede do evangelho
e o santuário de seu nome. Por ser odiada pelo mundo, ela pode perceber a fúria e a violência do
diabo e do anticristo, mais e mais excitados contra ela. Não obstante, amada por Deus e querida por
ele como a menina de seus olhos, ela docemente busca refúgio sobre a sombra de suas asas,
alegrando-se com júbilo não só em suas coisas boas, mais comunicando esse favores também a
muitos outros, de modo que ele merece a alcunha de mãe ou de ama dos que professam que, depois
de Deus, devem a esse estado sua origem ou crescimento. Mas, nesse aspecto, ela é mui
especialmente feliz - Pois pelo especial favor de Deus sempre desfruta o maravilhoso privilégio da
Reforma e tem preservado até aqui, sem lhe causar dano, o que há de mais precioso na religião
(keimélion) que lhe foi confiada. Essa é nossa glória, é nossa coroa, pela qual somos bem
distinguidos acima de muitos outros povos da terra aos quais se negou semelhante graça: somos
caracterizados pelo glorioso nome que pertence a Deus e ao Santo Leão.


De fato, visto que nada nos seria mais importante do que constante e fiel custódia de um benefício
tão imenso (com uma grata comemoração dele oferecida a Deus, o doador), era, mui distintos nobres,
o incansável desejo de vossos pios ancestrais que, como as melhores amas da igreja, sempre
mantivessem entre seus primeiros cuidados o de apoiar energicamente a causa da religião não
menos que a liberdade, para que fosse preservada pura e livre de todo contágio de erros: mui
sabiamente julgá-la como a estátua de palas que Tróia tampouco fez descer do céu (ouranopetes)
escudo em que Roma outrora se gloriava, como a arca da aliança, penso indubitável da presença de
Deus (de cuja retenção e conservação dependiam a segurança e a felicidade tanto da república
quanto da Igreja).      


Seria demorado relatar com que monstruosos erros esse mui vil inimigo da raça humana, numa época
anterior, tudo fez para obscurecer e, ao mesmo tempo, extingue a luz do evangelho renascente -
não só pelos inimigos ajuramentados da Reforma, que tudo fizeram para colocá-la de volta sob o
prístino jugo da servidão anticristã, mas também por meio do pérfido Sinons, que, vivendo em seu
seio sob o plausível porém falso pretexto de nutri e ilustrar a religião, tentou introduzir na doutrina a fé
de opiniões letais. Com maravilhoso sucesso, graças a vigilância de nossos ancestrais, o Senhor a
libertou. Vossos anais testificam por quão numerosos e grandes estratagemas a obra divina da
Reforma foi atacada quase em seu nascedouro; com que fúria de pessoas profanas e sediciosas a
santa disciplina dos costumes foi assediada, e quão amiúde a pureza da verdade evangélica foi
assaltada.




Antigamente, Isso foi tentado pela fanática ralé dos anabatistas, os quais, no ano de 1536,
imediatamente após os primórdios da Reforma, causaram distúrbio aqui. Depois foram as artes
enganosas (mais mutáveis que Proteus) e as mui iníquas calamidades de Peter Calori, o impudente
sofista. Então, uma vez mais as corrupções destrutivas da palavra de Deus e da doutrina ortodoxa
causadas por Sebastian Castellio, o líder dos semi pelagianos modernos; pelos artifícios mui visa de
Gruet, um homem turbulento, que lançou junto, na mesma miscelânea os erros, samosatenianismo e
maniqueísmo. Em seguida, no de 1551, pela impiedade de Jerônimo Bolsec, que tudo fez para
corromper a sacra doutrina da predestinação e da graça salvadora como o veneno pelagiano. Por fim,
essa obra maligna foi tentada pelas horríveis blasfêmias de Miguel Serveto, não um homem, mas um
monstro de toda perversidade, em referência ao adorável mistério da santa Trindade. Esse homem
infame, ainda que muitas vezes advertido, não cessou de vomitar o mais pérfido veneno entre o povo
comum, que ele já tinha espalhado ao longo de muitos anos nos lugares famosos da Europa. Por fim,
sendo lançado na prisão e perseverando em sua diabólica obstinação, ele sofreu o mais justo castigo
por exercravel impiedade no ano de 1553. Satanás ainda (tão amiúde disfarçado) não cessou de
renovar as disputas e de iniciar novos mestres de subsequente impiedade, a saber: Valentino
Gentilis, Paulo Alciatus e outros discípulos da mesma confraria a que pertencia sumamente imundo
Serveto. No ano de 1558, estes juntaram o erro dos triteístas com o samosatenianismo e o arianismo
(i.e., monstros com monstros). A estes, com autoridade, vossos predecessores restringiram
firmemente, e felizmente puseram em fuga, de modo que, sempre com grande louvor, foram
aprovados com os “infatigáveis e sinceros defensores da causa da piedade”, eminente
pronunciamento, que o mui distinto homem de Deus, Calvino, outrora usou para referir se a eles.


Que essa é também a vossa principal preocupação, mui atentos pais de vosso país, vosso zelo e
piedade não nos permitem que duvidemos. Pois deveras tendes lembrado que a autoridade
fortalecida pela piedade e pela justiça, segundo o oráculo do mais sábio dos reis; e que vosso
governo nunca será venturoso e bem ordenado a menos que cuideis para que, pela Palavra de Deus,
sua autoridade nos seja benéfica, e que Cristo mesmo reine por intermédio de vós. Tendes recordado
que aqui o que deve existir não é tanto uma aristocracia quanto uma teocracia, tendo Deus sempre
por seu presidente e soberano; e que a segurança da república, que deve ser sempre a lei suprema,
não seja menos considerada do que pela defesa dessas duas trincheiras intransponíveis: o cultivo da
religião pura e o pio cuidado de nutrir a igreja, a qual Deus entregou à proteção de vossas asas. Isto
tem sido tão bem cumprido até agora por vós, que não só a religião tem permanecido aqui
incontaminada por qualquer corrupção do erro e superstição, mediante o favor especial de Deus, mas
também nada além disso tem sido alterado na mais pura doutrina uma vez recebida aqui, a qual
tendes imposto a vós mesmos que seja sempre mantida religiosamente. Continuai, senhores,
constantemente nesse sagrado propósito e causa, por vossa piedosa e incansável vigilância, para
que essas coisas vos sejam perpétuas; de modo que, sob vossos auspícios, esta república seja
sempre feliz e próspera na piedade até a última posteridade. Isso, indubitavelmente, podeis esperar
de Deus, que prometeu ser o guardião daquelas cidades que forem a sede da verdade e o refúgio
dos piedosos, enquanto fordes sempre solícitos em adorá-lo e retê-lo religiosamente, e promover
sua glória acima de todas as coisas; enquanto tiverdes o cuidado de que haja entre vossos cidadãos
piedade e justiça, e de que prosperam o amor pela religião e pelo país, o amor e a santa harmonia
das almas, e os vícios (tantos nessa época tão corrupta, crescendo até mesmo na igreja) sejam
severamente reprimidos; enquanto por vosso zelo esta cidade realmente corresponder ao nome que
recebeu, “Reformada”, tanto na integridade dos costumes quanto na pureza da doutrina (e que eu
possa usar a expressão “cidade de Deus” é verdadeira chptsybhh, na qual esteja o beneplácito de
Deus).


Conquanto que esse cuidado pertença não só aos governantes da república e aos homens
proeminentes, porém mais estreitamente toque àqueles que ministram as coisas sacras  (aos quais o
supremo árbitro das coisas emprega para seu serviço), não podemos admirar suficientemente o seu
providente cuidado por nós, escolhendo esse lugar para ser uma sede da verdade. Assim ele nunca
abandona sua obra, mas envia obreiros fiéis e enérgicos a sua seara, para que, supridos de
excelentes dons, comecem corajosamente a divina obra de purgar a religião e, uma vez começada,
a levem à plena perfeição. Todos sabem quanto Genebra devem aos labores desses eminentes
servos de Deus, Willian Farel e Pedro Viret, que a Deus aprouve usar ao lançar os fundamentos da
Reforma; mais especialmente o mui fervoroso e a infatigável diligência do maior teólogo, nunca
suficientemente elogiado, João Calvino. Ele se tornou bem conhecido (tou pany) por seu profundo e
ardente zelo e por sua incansável diligência. Munido maravilhosamente de um espírito heroico,
um juízo mui acurado e profunda erudição, foi inesperadamente chamado  por Deus para a sua obra
em Genebra nos mais difíceis tempos. Deus quis que seu labor fosse venturosamente despendido
em estabelecer uma doutrina mais pura e uma disciplina dos costumes igualmente mais pura
(contudo não sem grandes protestos).


Seus seguidores, que mantiveram acesa a lâmpada após ele, sempre propuseram isto assim mesmo
antes de quaisquer outras coisas: que sejam rejeitados os “balbucios impuros” (bebelois kainophoniais)
e os “ensinos errôneos” (heterodidaskaliais) (os quais o apóstolo denuncia), para que a santíssima
verdade (parakatathekem) que receberam impolutamente de seus ancestrais, também possam
preservar religiosa e impolutamente e transmitir a seus sucessores. Visto que nós, pela graça de Deus,
ainda agora desfrutamos esse singular benefício, não poderíamos escapar a culpa do mais pesado
crime se permitíssemos que essa glória e coroa fosse arrebatada de nós e que aqueles que
sucederam tais homens em seus labores não fossem solícitos em imprimir fidelidade em seus rastros.
Aliás, permitam-me dizer algo sobre mim mesmo.


Continua na segunda parte …


François Turretini

Retirado do livro Compêndio de teologia apologética. São Paulo: Cutura Cristã, 2011, vol. 1;
Tradução de Edições Paracletos, p. 25-31.

Leia a segunda parte do texto: FRANÇOIS TURRETINI: Tributo à ilustre cidade de Genebra (parte dois)
Vídeo da Primeira Parte: François Turretini "Tributo à sempre célebre República de Genebra"

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