CALVINO, GENEBRA E AS CAMADAS DO SAGRADO - Dr. Luiz Fabiano de Freitas


Calvino, Genebra e as camadas do sagrado

Dr. Luiz Fabiano Tavares
A cidade Suíça de Genebra representou importantíssimo papel na história da Reforma. Em 1526 os cidadãos de Genebra romperam com a casa aristocrática de Saboia, que dominava a região, fundando uma república. Já nesse tempo ideias reformadas circulavam na cidade e em 1535 o conselho governante rompeu laços com a Igreja Católica, adotando formalmente a Reforma no ano seguinte. Nas décadas subsequentes Genebra recebeu grande quantidade de refugiados que fugiam de perseguições religiosas, especialmente vindos da França. O mais famoso desses refugiados, sem qualquer dúvida, é João Calvino (1509-1564), que no ano de 1541 se instalou definitivamente na cidade, tornando-se nos anos posteriores um dos mais destacados pensadores reformados.
O viajante que visite Genebra poderá encontrar inúmeros testemunhos de sua história e da importância da Reforma na formação da cidade, inclusive no belíssimo Museu Internacional da Reforma. A pequena distância também poderá visitar a Catedral de São Pedro, onde Calvino pronunciou a maioria de seus sermões. Curiosamente, a atual fachada do prédio não data da época do reformador, tendo sido reconstruída no século XVIII, seguindo projeto do arquiteto italiano Benedetto Alfieri, em estilo neoclássico, então em voga, tomando uma forma que imitava os antigos pórticos gregos e romanos.
[Imagem A – Legenda: Antiga fachada da igreja em gravura realizada em 1730 por Robert Gardelle (esquerda) e a atual fachada, retratada em 1809 por Christian Gottlieb Geissler (Acervo da Biblioteca de Genebra).]
Adentrando o edifício, todavia, o visitante encontra a antiga nave, cuja decoração simples e elegante deriva dos esforços dos primeiros reformadores, cujo programa estético e eclesiástico determinava a eliminação de elementos decorativos considerados supérfluos ou excessivamente luxuosos. É interessante sentar ali e imaginar como era o culto à época da Reforma e os personagens que ali circulavam naquele período, como o próprio Calvino, mas também pessoas direta ou indiretamente envolvidas com a experiência da França Antártica (breve experiência de colonização francesa na Baía de Guanabara), como Jean Crespin, Pierre Richer ou Jean de Léry.
[Imagem 1 – Legenda: No interior da igreja é possível notar a estrutura arquitetônica gótica aliada à decoração simples elaborada pela Reforma. Ao fundo, o púlpito onde o próprio Calvino pronunciava seus sermões. (Fotografia do acervo pessoal do autor).]
No entanto, a catedral guarda outras surpresas... Seu subsolo é um riquíssimo sítio arqueológico, escavado desde 1977 e hoje aberto à visitação. Na verdade, a área já era ocupada há dois mil anos, antes mesmo da chegada dos romanos à região. Não à toa, ali se situava o túmulo de um chefe alobrógio - da tribo celta dos Alobrógios. É difícil dizer se era mesmo um chefe – é sempre saudável desconfiar da precisão de identificações arqueológicas. Em todo caso, ali jaz um guerreiro celta do século I a.C.
[Imagem 2 – Legenda: O bem conservado túmulo de um guerreiro alobrógio lembra os antigos habitantes da região. (Fotografia do acervo pessoal do autor).]
A certa distância dali se encontra um pequeno tesouro monetário enterrado no mesmo século. Note-se que com o tempo e a ação química da umidade as moedas se fundiram num bloco maciço. É interessante observar que entre algumas etnias celtas esses enterramentos de moedas (e outros objetos) correspondiam a uma forma bastante comum de culto a divindades ctônicas (subterrâneas). Por sinal, isso é particularmente verdadeiro em relação às tribos helvéticas, como mostra o famoso exemplo do lago de La Tène, onde eram atiradas oferendas. Tanto o túmulo quanto as oferendas monetárias mostram que aquele era um local sagrado, onde os mundos dos vivos, dos mortos e das divindades se encontravam.
[Imagem 3 – Legenda: O enterramento de moedas testemunha as práticas religiosas dos antigos alobrógios. (Fotografia do acervo pessoal do autor).]
O sítio arqueológico também preserva vestígios de que logo após a conquista romana o local foi transformado num templo. Esses vestígios são compostos principalmente por elementos arquitetônicos como capitéis de coluna ou alguns arcos. Curiosamente, essa camada enterrada corresponde à atual fachada de inspiração greco-romana, lembrando que a história e os estilos artísticos muitas vezes compõem complexas e inesperadas espirais. Os construtores da época romana dificilmente poderiam imaginar que seu modelo arquitetônico seria reutilizado no mesmo local, tantos séculos depois...
Por volta do século IV d.C. o local começou a ser utilizado como templo cristão, sofrendo sucessivas ampliações e alterações até o século XII. Por exemplo, podemos ver um batistério muito bem conservado, alimentado por um engenhoso sistema hidráulico. A forma e as dimensões do batistério remetem à propagação do cristianismo na Europa durante a Alta Idade Média, em que muitos se tornavam cristãos já adultos, tendo sido educados em cultos pagãos, marcando também uma outra fase do Catolicismo, em que era menos comum o atual costume de batizar crianças.
[Imagem 4 – Legenda: É possível perceber na direção superior direita o ponto terminal do encanamento que alimentava o batistério. (Fotografia do acervo pessoal do autor).]
Também é possível ver vestígios do antigo coro da Igreja, com sua simpática decoração geométrica esculpida na pedra, característica das edificações da Alta Idade Média, lembrando as antigas e profundas ligações entre música e espiritualidade, comuns a diversas denominações cristãs. Séculos mais tarde Calvino enalteceria a pureza e simplicidade do louvor através do canto a capella.
[Imagem 5 – Legenda: Esses entalhes rústicos e despojados talvez combinassem com a elegante simplicidade mais tarde almejada pelos homens da Reforma. (Fotografia do acervo pessoal do autor).]
Nesse mesmo período também foi instalado um claustro ao lado da igreja, lembrando a importância do monasticismo na história do Cristianismo durante a Idade Média. As celas dos monges era aquecidas por um engenhoso sistema de calefação radial, que nos meses mais frios distribuía ar quente através de tubulações sob o piso.
[Imagem 6 – Legenda: O sistema de calefação ajudava a enfrentar o rigoroso inverno dos Alpes. (Fotografia do acervo pessoal do autor).]
No fim da Idade Média o bispo local ainda contava com acomodações luxuosas do outro lado da Igreja, incluindo uma sala de recepção com sofisticada pavimentação decorativa, parcialmente conservada.
[Imagem 7 – Legenda: Os elaborados mosaicos contrastam com a simplicidade do atual piso da igreja, metros acima. (Fotografia do acervo pessoal do autor).]
No século XV o espaço foi amplamente reformado, e a catedral ganhou as formas góticas que ainda hoje ostenta em seu interior. Menos de 100 anos passados, com a adesão de Genebra à Reforma, a Igreja se tornou local de culto protestante, como já vimos.
É impressionante notar que ao longo de dois milênios e suas sucessivas transformações religiosas esse mesmo local permaneceu sempre sendo usado para funções sagradas. Coincidência?
Provavelmente não, a começar pela primeira mutação, logo após a conquista romana. Como se sabe, foi muito comum que antigos santuários celtas tenham sido "romanizados" pelas próprias populações nativas, originando inclusive estilos artísticos e arquitetônicos híbridos. Nesse sentido, era uma transformação muito mais arquitetônica que religiosa, embora as próprias divindades locais fossem muitas vezes assimiladas a divindades romanas equivalentes. É provável que os próprios Alobrógios tenham participado ativamente dessas transformações, em seu processo de integração ao mundo romano.
Por outro lado, a posterior apropriação católica daquele espaço teria finalidade muito distinta. A ocupação e cristianização de antigos santuários foi uma estratégia de catequese e conversão intensamente empregada pela Igreja Católica na época do Baixo Império e no início da Idade Média - que, por sinal, foi muito reutilizada durante a retomada da Península Ibérica aos muçulmanos e mesmo durante a conquista da América, transformando mesquitas ou templos ameríndios em locais de culto católico.  Nesse sentido, tratava-se de deliberada ação de proselitismo religioso, relacionado ao processo de expansão do Cristianismo do Mediterrâneo ao norte da Europa.
De certa forma, o mesmo pode ser dito da apropriação reformada no século XVI, quando a catedral católica sofreu drástica simplificação decorativa, como parte do programa protestante, especialmente através da eliminação das imagens. Desta feita, era um movimento de transformação dentro da própria tradição cristã que imprimia sua marca ao espaço e ao edifício.


Enfim, a Catedral de São Pedro em Genebra condensa não apenas dois mil anos de espiritualidade ocidental, mas ainda a densa trama de relações sociais, políticas e econômicas que engendraram todas essas transformações ao longo dos séculos. Suas paredes e seu solo guardam vivos e impressionantes registros da busca do ser humano pelo divino ao longo das eras, passando por diversas tradições religiosas e espirituais; as escavações arqueológicas no local mostram que os reformadores do século XVI caminhavam literalmente sobre séculos dessa longa aventura humana, constituindo mais um elo de uma longa corrente que mergulha no passado distante...








Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense; autor dos livros Entre Genebra e a Guanabara – A discussão política huguenote sobre a França Antártica (Topbooks, 2011) e Da Guanabara ao Sena – Relatos e cartas sobre a França Antártica nas Guerras de Religião (EdUFF, 2011).

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