ERROS OU HERESIAS SÃO REFUTADOS NOS CÂNONES DE DORT?

O Sínodo de Dordt (1618/19) considerou a doutrina dos arminianos como um erro ou como uma heresia?
Alguém me fez esta pergunta recentemente. Posso imaginar por que ele me perguntou isso, porque várias edições dos Cânones de Dordt em português falam sobre a “refutação dos erros” (grifo meu). ​A palavra “erro” significa segundo o dicionarista Sacconi, “Qualquer desacerto praticado por desconhecimento, inaptidão ou ignorância; uma falha evitável; uma falta leve”. Uma pessoa pode cometer um erro, mas quando ela descobre isso, ele se desculpará e procura corrigi-lo
​Uma “heresia” é um erro que se repete e que não é praticado por desconhecimento ou ignorância, mas de propósito, porque a pessoa que cometeu o erro tem uma outra opinião ou outra interpretação das Sagradas Escrituras. Segundo Sacconi, heresia é “Opinião ou doutrina que diverge daquela estabelecida pelas crenças religiosas”.
​A Ata do Sínodo de Dordt escrita em Holandês fala sobre “De verwerping der dwalingen”. A palavra holandesa “dwaling” indica uma heresia com o mesmo sentido descrito por Sacconi: “Opinião ou doutrina que diverge daquela estabelecida pelas crenças religiosas”.  Mas o dicionário padrão Holandês – Português diz que devemos traduzi-la pela palavra “erro”, o que é, a meu ver,  um erro. Vou explicar isso.
​Em primeiro lugar quero apontar para a pré-história do Sínodo de Dordt. A discussão sobre a predestinação, a graça irresistível e o livre arbítrio não foi uma coisa isolada, mas já estava sendo feita por muitos anos. Inicialmente entre Francisco Gomarus e Jacó Armínio, e depois entre os alunos de Armínio, os quais apresentaram a “Remonstrância” e um grupo de pastores das Igrejas Reformadas, os quais apresentaram a “Contra-Remonstrância”. Na  introdução dessa “Contra-Remonstrância” , os pastores reformados apontam em primeiro lugar que os Remonstrantes (= Arminianos) não concordam com as Confissões das Igrejas Reformadas e procuram uma revisão das mesmas; em segundo lugar, que eles querem uma revisão das Confissões, mas não querem dizer publicamente em quais pontos eles não concordam; em terceiro lugar, que os Remonstrantes sugeriram que as confissões não contêm a sã doutrina das Sagradas Escrituras; em quarto lugar, que eles apresentaram uma “Remonstrância” que não é muito clara e tem muitas expressões equívocas;  em quinto lugar, que os Remonstrantes insinuam erradamente que os pastores pregam doutrinas que não são de acordo com as Escrituras. No final, antes de apresentarem a sua “Contra-Remonstrância” os pastores reformados disseram: Em nossas igrejas se prega assim (e seguem os 7 pontos da Contra-Remonstrância).
A questão não é sobre alguns erros que foram cometidos, mas tanto do lado dos arminianos como também dos Calvinistas, a questão era uma questão de doutrinas erradas. Ambos acusaram os oponentes de cometerem heresia e não de um erro cometido por desconhecimento ou ignorância.  Os dois partidos conheciam muito bem a sua própria doutrina e a doutrina dos oponentes. Isso ficou mais claro ainda em 1613, quando ambos os partidos fizeram um documento em conjunto que explicava quais eram as divergências entre os dois.
​Em segundo lugar devemos observar o caráter do Sínodo. O Sínodo de Dordt foi um Sínodo internacional. Muitos delegados das igrejas reformadas no exterior foram convidados para participar e expor as suas opiniões a respeito das questões e princípios que estavam em jogo. Então, a questão não foi uma questão leve a respeito de algumas faltas leves. A doutrina das Sagradas Escrituras, que estava resumida nas confissões das Igrejas Reformadas, estava em jogo. Por causa disso, todas as igrejas tanto no interior como também no exterior foram convidadas. As igrejas não iriam mandar seus delegados se a questão não fosse importante.
​Em terceiro lugar, vemos o seguinte: o Sínodo tratou a questão dos Remonstrantes na sessão 137 e ali está escrito em latim (cito o Latim, porque a tradução do holandês para o português pode causar confusão. Veja acima): “Absolutis hunc in modum iis quae spectarent ad doctrinam, praelecta est iudicii synodici de Remonstrantium formula; eorum inprimis, qui ad hanc synodum citati contumaciae crimine se toties obstrinxerant. Qua de re audita sunt iudicia” (em português: Sendo concluídas as discussões a respeito da doutrina, foi lida a forma das sentenças feita pelos delegados do Sínodo a respeito dos remonstrantes, quer dizer: daqueles que foram convidados por causa do crime da obstinada insubordinação deles (grifo meu). Então, não foi por causa de um erro, de uma falta leve, mas por uma insubordinação contra a doutrina da igreja.
​Em quarto lugar, temos que observar a estrutura dos Cânones de Dordt.  Os Cânones de Dordt tem 5 capítulos. Cada capítulo apresenta primeiramente a sã doutrina e depois segue uma parte em que se rejeita os “erros” ou heresias dos arminianos. Antes de mencionar essas heresias, o Sínodo diz: “Havendo explicado a doutrina ortodoxa, o Sínodo rejeita os seguintes erros” (de acordo com a edição de Cultura Cristã). A doutrina ortodoxa está em contraste com os “erros” dos Remonstrantes. Isso indica que os “erros” não são acidentais e leves, mas são “erros” de doutrina, que não são de acordo com a sã doutrina da igreja.
​Em quinto lugar, analisemos o seguinte: Se os “erros” dos Remonstrantes eram pequenos pontos de discussão que estavam dentro dos parâmetros da doutrina reformada daquela época, as igrejas não precisavam de um Sínodo para julgar os “erros” deles. Mas a Conclusão do Sínodo ao final dos Cânones diz que “há muitas outras coisas semelhantes que as Igrejas Reformadas não apenas não confessam, mas também repelem de todo coração” (grifo meu). E em outro lugar se diz: “Além do mais, o Sínodo adverte os caluniosos para que considerem o severo julgamento de Deus à espera deles, por falar falso testemunho contra tantas igrejas e contra as Confissões delas, e por conturbar as consciências dos fracos e por tentar colocar em suspeito, aos olhos de muitos, a comunidade dos verdadeiros crentes” (grifo meu).  O Sínodo não usaria tais palavras sérias, se somente se tratava de pequenos “erros”.
​Em sexto lugar, faz-se necessário lembrar que os arminianos não participavam no Sínodo como delegados (o que eles queriam!) mas como citados. O Sínodo os convocou, mas a posição deles durante as reuniões era a posição dos réus. O Sínodo se reuniu para avaliar e analisar a doutrina deles de acordo com as doutrinas das Escrituras que foram resumidas nas Confissões das Igrejas Reformadas.
​Em sétimo e último lugar, devemos lembrar que os remonstrantes que foram citados, foram suspensos pelas igrejas. Isso só acontecia quando alguém cometia pecados públicos ou pregava doutrinas falsas. Mais do que duzentos pastores foram depostos. Uma grande parte voltou após a subscrição das Confissões e depois de ter feito a promessa de não ensinar nada que era contra a doutrina bíblica das Confissões. Tudo isso não faz sentido se o Sínodo só tratou alguns “erros”, que foram cometidos.

Abram de Graaf é holandês, “Doctorandus” (Drs) em Teologia e um dos professores do Instituto João Calvino (Aldeia, Camaragibe-PE). Ele é pastor da Igreja Reformada de Hamilton, Canadá, enviado como missionário às Igrejas Reformadas do Brasil, desde o ano 2000. Ele mora em Maceió e também desenvolve projetos nessa cidade.


.

Comentários

Ricardo L P disse…
"... Português diz que devemos traduzi-la pela palavra “erro”, o que é, a meu ver, um erro. Vou explicar isso..." Mas se os próprio tradutores sabem que a tradução da palavra dwaling é heresia, então o continuo uso da palavra erro como tradução, não é um erro dos tradutores, mas sim uma heresia...
Beny Vendas disse…
Li a postagem e queria fazer alguns comentários. Primeiro a edição que tenho aqui sobre os cânones de Dort da Editora cultura Cristã na pagina 15 considera sim os erros dos remostrantes como heresia. Segundo o sínodo de Dort não teve apenas a questão doutrinal da igreja reformada como à única razão para condenar os arminianos mais a questão politica também estava em jogo já que os remostrantes e as autoridades que os apoiavam estavam sob suspeitas de serem aliados da Espanha a velha inimiga dos batavos então não era apenas uma questão bíblica mais também politica.Terceiro achei muito redundante determinar uma heresia por um dicionário e não pela tradição da igreja e pelos postulados dos reformadores será que Calvino era herege por acreditar que Miguel era Jesus e por não rebatizar os católicos que se convertiam para igreja reformada de Genebra. Quarto quando o autor define heresia como divergência deliberada e consciente contra as confissões de fé ele está se referindo a todas as confissões de fé das igrejas reformadas, será que a igreja reformada do Brasil e do Canadá aceita a CFW elaborada pelos puritanos no século XVII na Inglaterra como confissão de suas igrejas ou apenas as confissões de Fé da igreja da Holanda, a confissão Belga, os Cânones de Dort e o catecismo de Heidelberg.

Postagens mais visitadas deste blog

COMENTÁRIO BÍBLICO JÓ 1.4-5 Quais foram os pecados dos filhos de Jó?

SERMÕES REFORMADOS ESCRITOS (para uso nas devocionais em família, estudos e cultos)

MAR DE JUNCO OU MAR VERMELHO? Kevin DeYoung